Daniel Duncan
COMO “TWIN PEAKS” AJUDOU A MUDAR A FORMA DE SE FAZER COMÉDIA NA TV

Criada por David Lynch e Mark Frost, a série Twin Peaks completa 30 anos em 2020 e não há como negar que ela foi um marco cultural, revolucionando toda a forma de se fazer TV nos anos 90. Uma coisa é fato: metade das suas séries favoritas não existiriam hoje sem Twin Peaks. Isso acontece porque naquela época havia uma enorme consciência de massa, com pessoas assistindo as mesmas coisas ao mesmo tempo. Eram obras enlatadas, sem qualquer ambição artística, com gosto de comida industrializada. Nesse contexto, Twin Peaks aparece com uma trama mais rica que o catálogo inteiro do seu serviço de streaming favorito: ocultismo, horror, assassinato, soap opera, coming of age, vanguardismo; tudo organizado em uma história complexa (e autêntica) que faltava na tevê norte-americana.
O piloto parte desse lugar comum, familiar ao público, e, muito rapidamente, está derretendo os lobos frontais de seus espectadores. Essa história começa na manhã do dia 24 de Fevereiro, na cidade de Twin Peaks, quando o madeireiro Pete Martell descobre o cadáver de uma mulher nua envolto em um plástico transparente nas margens de um rio. Após a chegada do xerife Harry S. Truman, o legista da cidade Dr. Hayward e o policial Andy Brennan, descobre-se que o corpo é da estudante Laura Palmer. Antes disso, o policial Andy ajoelha-se para fotografar a cena do crime e subitamente chora. Muito. E o xerife resmunga:
"Pô, isso vai acontecer todas as vezes?".
A emblemática sequência de abertura da série é muitas coisas ao mesmo tempo. Uma delas é ser estranhamente engraçada. Toda a seriedade de uma série criminal se dissipa quando o policial simplesmente não consegue ficar ali, diante de um corpo sem chorar como uma criança.
Tentar enquadrar o trabalho de David Lynch em qualquer categoria é certamente uma tarefa fadada ao fracasso, mas não há como negar que a comédia é um elemento importante em sua obra, seja em performances exageradas como a de Dennis Hopper em Blue Velvet, ou a simbologia da paternidade em Eraserhead, ou ainda uma estranha obsessão por pães.
Lynch, ainda nos anos 90, já explorava o mesmo tipo de humor surrealista presente em programas de sucesso hoje, como Eric Andre Show e Tim & Eric — não é à toa que ambos já prestaram homenagens ao cineasta em seus shows e manifestaram publicamente a influência dele:
Oh, the blogosphere’s gonna love that anti-Semitism. I’ve been asked to ask you: Who are your storytelling influences? Tim: Oh, I heard that was an idea for this story. Well, Dostoyevsky. Eric: Who’s the guy that does the Giving Tree? Shel Silverstein? [Laughter] I mean, like, for me, it’s things like David Lynch. Recently, we were watching his old stuff, like Blue Velvet and Wild at Heart, which are almost like traditional stories — which we’re trying to tell here — but there’s this perverted nature of everything. It’s really interesting.
A forma como Twin Peaks transformou a maneira de se fazer comédia na televisão não foi apenas inserindo humor incongruente em cenas, mas experimentando técnicas cômicas na construção dos personagens e da própria trama. Acredito que não existe momento mais "cringe" na história da tevê se não esse que, durante o funeral de Laura Palmer, seu pai, Leland Palmer, salta na cova e fica suspenso em cima do caixão da própria filha.
O momento não é apenas engraçado pelo desconforto inerente à situação, mas também porque revela muito — e mais tarde, mais ainda — sobre o personagem. Indo mais além, Lynch também brincou com as próprias expectativas e ansiedades do público com relação a série quando, por exemplo, fez uma transição de uma temporada para a outra com uma interminável cena de um personagem sendo atendido por um garçom, enquanto encontra-se no chão após ser alvejado por uma espingarda.
Algo similar acontece na mais recente temporada da série, disponível na Netflix e lançada pela ShowTime, onde conhecemos Dougie Jones, que nada mais é que o agente Cooper preso no corpo de um idiota com a personalidade de um bebê.
Piadas costumam ser definidas como "expectativa + alívio de uma tensão". O começo de uma piada cria uma expectativa para o público, o que gera tensão, e o final alivia essa carga. Aqui, a expectativa é que Dougie vire o agente heróico das temporadas passadas. Dessa forma, Lynch usa da ansiedade dos espectadores para criar momentos divertidos através de situações completamente banais que, em outro contexto, não teriam graça alguma.
Através do humor, Lynch consegue criar não apenas gags humorísticas que divertem, mas que também carregam conceitos importantes para a compreensão de suas histórias. Isso é visível em outra obra do cineasta, Mulholland Drive, onde nos deparamos com uma situação envolvendo um assassino de aluguel que, durante um trabalho, causa uma série de "acidentes".
Mais tarde vamos descobrir * SPOILER ALERT * que muitas das cenas são fragmentos da consciência da protagonista, Diane, que lida com a culpa por ter contratado um assassino de aluguel para matar um antigo amor. Portanto, a peça humorística funciona em muitas camadas, brincando com o estereótipo dos filmes americanos que nos ensinam que os assassinos são exemplos de perfeição, como também funciona em um nível mais profundo, simbolizando a culpa e a paranoia da protagonista em relação ao crime que está envolvida.
Essa última característica é essencial para entender melhor o humor de Lynch. Suas piadas são a justaposição de dois tipos específicos de humor: gags mais bobas, como as de desenhos animados, na qual o personagem pisa em uma tábua solta e machuca o rosto, até piadas que carregam uma dimensão mais sombria e incomum, como quando conhecemos a Log Lady, uma moradora de Twin Peaks que cuida de um tronco de madeira como se fosse um filho.
“Um dia meu tronco terá algo a dizer sobre isso. Ele viu algo naquela noite”.
Essa estranha introdução coloca o público a par dos aspectos sobrenaturais da série. Vemos isso também na nova temporada quando conhecemos o ameaçador Woodsman. Uma criatura com uma densidade sombria fora do comum e que perambula pedindo fogo para os seus cigarros. Essa mistura do sobrenatural com o banal é o cerne do humor lynchiano. E há um porquê:
Em Twin Peaks — Fire Walk With Me, filme que segue os últimos dias de Laura Palmer e amplia o vasto universo da série, há uma cena na qual Laura Palmer caminha pelos corredores da escola segurando um livro que ela está lendo.

O livro é um romance escrito por William Saroyan e narra a história de Homer Macauley, um garoto de 14 anos que foi criado sem pai no vale de San Joaquin, na Califórnia, em meio a Segunda Guerra Mundial. Seu irmão mais velho, Marcus, está lutando na guerra, e Homer sente que precisa ser o homem da família. Para ganhar dinheiro, ele aceita um emprego noturno como garoto de telégrafo, entregando notícias sobre falecimentos para as famílias de homens na guerra. No entanto, Homer também mantém sua vida normal, indo à escola, à Igreja e ao cinema. Suas raízes e senso do que é certo e errado o mantém honesto e esperançoso apesar dessa triste realidade que o cerca.
Não é difícil traçar um paralelo com a história da personagem na série. Laura também é uma jovem com uma vida dupla, trabalhando em um emprego noturno, mas tentando viver normalmente e, assim, carregando, sozinha, dramas e traumas que revelam as piores faces da humanidade.
Na última temporada da série fica claro que Twin Peaks discorre sobre como o mal, em seu estado mais puro, pode se apoderar de nossas vidas, e como devemos encarar as dores do passado para encontrarmos forças para o futuro . A Parte 8 revela que há uma grande luta entre o bem e o mal, criado pela bomba atômica, e Laura é o único ser que pode conter esse mal. Assim, a garota é condenada e por mais que fuja, no passado ou futuro, em vida ou morte, o mal estará sempre presente.
A propósito, o livro se chama A Comédia Humana [The Human Comedy].